Um antigo ditado português, lugar onde praticamente todos os nossos provérbios náuticos se originam, diz que “As marés e o tempo não esperam nenhum homem”. É certo! Nós, velejadores, sabemos como é importante respeitar a natureza e seus humores. A diferença entre uma grande velejada e o “inferno na terra” é saber exatamente a hora certa de sair e para onde ir, se o mau tempo se aproximar.

Felizmente, nos dias de hoje, as previsões de tempo estão cada vez mais acuradas e permitem que tenhamos uma boa certeza do que acontecerá nos próximos dois dias e uma razoável ideia do que virá em uma semana, permitindo um bom planejamento de rota. Isso facilita muito a nossa vida, aumenta demais nossa segurança e me faz respeitar, cada vez mais, nossos antepassados navegadores. Quando penso que faziam travessias imensas por mares que não conheciam em detalhes, sem conhecer perfeitamente as condições climáticas de cada região, sem condições de prever mudanças no tempo, sem conhecer sua posição exata e sem todo aparato eletrônico que temos hoje para auxiliar a navegação, entendo porque dizem que naquela época “os barcos eram de madeira e os homens eram de aço”.

Hoje tudo é mais fácil! Muita tecnologia e muito conhecimento humano acumulado desde que o ser humano começou a navegar, fazem com que muitos veleiros com famílias, amigos ou solitários estejam navegando pelos mares do mundo inteiro. Mas, mesmo assim, continuamos sem poder mudar as marés e o tempo: somos e sempre seremos dependentes da natureza.

Bem, mas é hora de parar de filosofar e preciso continuar a história de nossa viagem!

Após os dias de bonança nas BVI’s, retornamos para St. Maarten para receber uma visita especial: nosso grande amigo de Ilhabela e tripulante honorário do Travessura, Luís Pimenta, chegaria para passar alguns dias a bordo curtindo o Caribe. Pimenta chegou contrariado, mas com várias histórias “engraçadas” para contar: quase o prenderam no Panamá por causa de um colete salva-vidas auto inflável que nos trazia de presente e que pensaram que tinha roubado do avião; não queriam liberá-lo em St. Maarten enquanto não soubessem onde estava o Travessura (ainda bem que fomos esperá-lo no aeroporto!). Mas pior, e por isso estava “fulo” da vida: tinham lhe tomado a garrafa com água e areia de Ilhabela, que trazia para que nós “matássemos saudades de nossa Ilha”! Só o Pimenta, mesmo!!!

Foram dias excelentes com ele! Muitas compras para a família, muitos dias de pescaria, muitos mergulhos e velejadas deliciosas entre St. Maarten e St. Barths. Mas nada disso estava planejado! Os planos eram ir para Antígua e ver as tradicionais regatas da Antígua Sailing Week. Como um vento contra forte iria entrar nas nossas “fuças” se quiséssemos ir para Antígua, mudamos nossos planos, respeitamos a vontade de Eolo e aproveitamos o que podíamos (que era maravilhoso!).

Retornamos de St. Barths, com dois atuns de quatro quilos para um happy hour no Luar, combinado antecipadamente. Eles se transformaram em sashimi e peixe assado no forno rapidamente! Nesse happy hour, nossos planos também começaram a se transformar. O amigo Ronny do Luar, que já fez a travessia do Atlântico várias vezes, deu uma “senhora” aula de meteorologia do Atlântico Norte para os comandantes dos vários veleiros brasileiros que iriam fazer essa travessia. Mais, nos mostrou que uma janela de tempo excelente se formava para que partíssemos em breve, ou seja, dois dias depois da reunião! Bem, não estávamos prontos, mas a janela não nos esperaria estar prontos!

Os dois dias seguintes foram de correria. Dividimos a tripulação para poder organizar tudo, colocamos o Pimenta na roda-viva também e conseguimos deixar tudo em ordem para partirmos na data certa, inclusive com a troca de um vaso sanitário que quebrou um pouco antes da partida. Mas, antes de zarpar, ainda fomos dar “até breve” ao sempre companheiro Pimenta, que pegava o avião para voltar ao Brasil no mesmo dia de nosso zarpe: sete de maio! Nós o convidamos para ir conosco, mas em virtude de compromissos profissionais e familiares, ele não pode seguir no barco, mas foi um ótimo tripulante virtual ajudando-nos na meteorologia.

Aliás, antes da partida adquirimos um telefone satelital Iridium que, em conjunto com o Spot, seriam nossa fonte de comunicação com terra. Com ele podíamos puxar previsões de tempo atualizadas, receber e enviar SMS’s para as pessoas que estavam nos acompanhando, trocar informações entre os barcos que estavam fazendo a travessia e ter contato de voz com terra e todos os barcos que tivessem o telefone satelital. Para nós era um equipamento de segurança e valeu cada centavo gasto com ele.

No dia da saída, três veleiros zarparam juntos: Luar, Luthier e Travessura. Os outros não conseguiram se preparar a tempo e, sensatos, preferiram esperar outra janela de tempo a zarpar despreparados. A tripulação do Travessura era a de sempre: eu, Jonas, Carol e nossos valorosos pilotos automáticos Cigano e Lázaro! Eu nunca pretendi fazer essa travessia apenas nós três (humanos!). Gostaria de ter, ao menos, uma pessoa a mais conosco. Mas a vida conspirou contra isso e as pessoas que convidamos antecipadamente não puderam vir ou não pudemos esperá-las, pois a janela não daria tempo hábil para que chegassem. Bem, como na travessia do Cabo de São Tomé em 2006, lá fomos nós três sozinhos. Desta vez com 2.400 milhas pela proa, mas com ótimas companhias para isso: o veleiro Luar e o veleiro Luthier, com os amigos de suas respectivas tripulações.

A travessia foi feita em vinte dias e foi excelente! Alguns dias de linda calmaria, com o mar todo espelhado, maravilhosos alvoreceres e crepúsculos, noites estreladas e enluaradas, visitas de golfinhos e baleias, muitas caravelas  (água-viva) ao longo do caminho e cruzamento com vários navios. Nesse ponto, o receptor de AIS que colocamos no Travessura se mostrou importantíssimo. A comunicação com os outros barcos foi muito satisfatória e os dias passaram rápido. Tivemos, também, o aniversário da Carol a bordo. Foi um aniversário de 16 anos muito diferente de todas as outras meninas!

Eu imaginava que chegaria muito cansado aos Açores, mas aconteceu justamente o contrário. Mesmo com o contravento dos últimos dois dias, que nos fez bordejar com vento forte para chegar e foi o único “senão” da travessia, chegamos com calma, descansados e sem pressa. Ainda ficamos velejando seis horas na entrada do porto da ilha de Flores para esperar acalmar o vento e a situação do mar dentro  do porto. E sem angústia de chegar!!!

Mas não posso dizer que não foi maravilhoso chegar! Os amigos Dorival e Catarina do Luthier já estavam em Flores e nos orientaram para a entrada na marina. Nos esperavam com um “batalhão” de gente para amarrar rapidamente o Travessura, pois batia muito no porto. Descer em terra depois de 20 dias de navegação, terras portuguesas dos meus antepassados, abraçar os amigos, andar um pouco pela belíssima ilha de Flores, um dos lugares mais bonitos e hospitaleiros que já vimos, e comer ovos, bifes de vitela e batatas fritas escutando o gostoso sotaque português por todos os lados, fizeram do dia 27 de maio, nossa chegada, um dos dias mais felizes de minha vida! O mar nos deixou passar, soubemos respeitar sua trégua e seus humores e cá estamos nós, neste maravilhoso e histórico arquipélago chamado Açores.

Depois de alguns dias conhecendo Flores e aproveitando a hospitalidade de seu bom povo, navegamos até a ilha de Faial, esquina do mundo, onde navegantes do mundo inteiro aportam. Mais beleza e mais hospitalidade, de uma terra que desde o século XVI está acostumada a receber bem os navegadores. Estamos fazendo todos os passeios “obrigatórios” aqui: fomos comer no Peter’s Café, visitamos seu museu de scrimshaw (arte de gravar figuras em dentes e ossos de baleias), visitamos a Fábrica de Baleia, fizemos nossa pintura no muro da marina da Horta, tradição entre velejadores para dar sorte nas próximas travessias e marcar nossa presença. Detalhes da travessia e de todos os lugares que conhecemos vocês podem ver em www.tresnomundo.blogspot.com.

 

É, amigos, para nossa travessia soubemos respeitar as marés e o tempo que não nos esperariam: eles não aceitam desaforos! O mar nos deixou passar, mas nos últimos dias nos mostrou que é ele que comanda, colocando-nos em nossos humildes e verdadeiros lugares. Tivemos uma travessia maravilhosa e uma chegada emocionante, num lugar divino de pessoas acolhedoras, onde os adjetivos são poucos para tantas coisas boas que se apresentam. Que mais pode querer um navegador?

Após aproveitarmos tudo que pudermos das várias ilhas dos Açores, que recomendo como um lugar para não se morrer sem conhecer e, de preferência, chegando por mar, iremos para Portugal Continental. Lá, nossas raízes nos esperam!

Estamos aproveitando as marés e o tempo de nossas vidas que se apresentam favoráveis. E lembrem-se sempre que a vida é como as marés e o tempo: não espera homem nenhum!

 

Em memória de Vail Mony, grande amigo navegador, que iria tripular o Travessura conosco na travessia do Atlântico.