A verdade é que a História Caiçara só pode ser contada em antes e depois da Rio-Santos. A estrada que trouxe o turista, o veranista, o refugiado da megalópole, o dinheiro, o Mc Donald’s – gentes e coisas estranhas à cultura deste litoral – essa estrada marcada pela singular beleza das paisagens que a margeiam, interferiu fortemente na economia e na cultura Caiçara. A valorização dos lotes próximos ao mar levou muitos pescadores para longe da praia e suas casas foram transformadas em condomínios. Foi uma mudança radical consumada em pouco tempo: longe de seu ambiente, os caiçaras tiveram de substituir a canoa, a rede e o remo por outras ferramentas de trabalho.

 

Mas quem estiver caminhando pelo sul da Ilhabela, ali pelos lados do Bexiga,  pouco depois da Pousada do Alemão, se estiver com sorte poderá encontrar a marcenaria do Vitor Manoel, o Vitinho[1] e, se estiver com mais sorte ainda, ser convidado a entrar. Se isto acontecer, o visitante vai se encantar com um trabalho que é ao mesmo tempo belo e eloqüente enquanto testemunha da cultura Caiçara. Vitinho e seu irmão Anderson[2] criam maquetes de construções e objetos caseiros do passado e reproduzem uma cultura e uma História que hoje só sobrevivem nas comunidades isoladas das ilhas Vitória, Búzios e Monte de Trigo, onde a Rio-Santos não passou. Contam um pouco da vida de um povo, de e de uma economia que desapareceram no continente.

 

Vitinho faz miniaturas de casas de pescadores de antigamente, ranchos de canoa, casas de farinha, entre outras, cujas áreas se medem em centímetros quadrados. Essa arquitetura diminuta, feita de bambu, pedrinhas, madeira, palha de coqueiro, barro e cola, reproduz uma tecnologia de construção civil criada pelo povo brasileiro: o pau-a-pique. Uma arquitetura que não se aprende na faculdade, uma ciência inventada pela imaginação popular.

 

Anderson, o mais novo dos irmãos, conta que começou a fazer miniaturas de casas por conta de um repouso exigido pelo médico: “três meses dentro de casa, de molho, sem nada pra fazer, resolvi fazer a Casa da Fazenda” – diz ele da obra em escala perfeita da grande sede de fazenda do século XVII. Mas a maquete, feita a partir de uma fotografia de 1930, mostra a casa concluída em 1697 e tombada como patrimônio histórico, num período de abandono, quase em ruínas, desabitada havia muito tempo. Anderson gosta do estilo colonial e “como não dava pra fazer uma grande, eu comecei a fazer pequenininha”. Isso foi em 2004. Vitinho começou pouco depois e já no ano seguinte arrebatou a medalha de ouro no XXVIII Salão de Arte Waldemar Belisário com uma obra apropriadamente chamada Lembrança Caiçara, maquete de casa de pescador de outros tempos. Nesta obra os detalhes ajudam a contar como era a vida caiçara: uma vassoura de palha encostada à parede, uma canoa, pequeninas telhas amontoadas num canto do quintal, galinhas…

 

Por estas e outras razões, o trabalho dos irmãos Anderson e Vitinho nos remete a um tempo em que a vida nestas latitudes era feita a partir de um contato íntimo e sustentável com os recursos da Mata Atlântica, de onde os caiçaras tiravam quase tudo de que precisavam: alimento, material para suas casas, para seus chapéus, seus fogões, seus objetos domésticos, para a tintura de suas roupas, seu remo e sua canoa. Alguém já disse que a cultura caiçara sucumbiu, no continente, no confronto com uma cultura “mais moderna, mais progressista” – que é como alguns chamam a economia um tanto predatória trazida pela Rio-Santos.

 

Pode ser antiquado fazer o chapéu e a vassoura com a palha do coco, fazer a casa com o material que está ali ao lado, como se o shopping da construção ficasse no quintal de cada um. Mas o trabalho de Anderson e Vitinho nos lembra que essa velha cultura caiçara tem pelo menos três qualidades tão verdadeiramente modernas que, se não forem adotadas por todas as outras culturas do mundo, o mundo vai acabar. Estas três qualidades da cultura caiçara autêntica, hoje só encontrada nas ilhas Vitória, Búzios e Monte de Trigo, são a utilização sustentável dos recursos naturais, o baixo consumo de energia e quase nenhuma produção de lixo não biodegradável.

 

Vale a pena ver a obra desses dois artistas e refletir sobre os seus significados. A cultura Caiçara, quase extinta, tem algo a ensinar ao mundo neste tempo sombrio de aquecimento global.

 

* Jorge Bouquet é cineasta e escritor.



[1] Vitinho: tel. (12) 3894 1373

[2] Anderson: tel. (12) 3894 2085