Cheguei à conclusão que velejadores, em geral, devem ter algum problema de memória. E não é uma deficiência de memória com tudo, não! Nem é aquela memória de algo que sumiu e que não lembramos onde colocamos. Esses casos, claro, são causados pelo gnomo de bordo! Pois sim, todo veleiro, por mais organizado que seja, tem um gnomo escondido a bordo que muda as coisas de lugar e as coloca sempre nos lugares mais improváveis. Mas não é dele, o gnomo, que quero falar, pois ele já é mais do que famoso entre os navegadores. Ainda mais do meu, que meus adolescentes juram que é alemão e tem nome: Alzheimer!

Falo da memória específica para maus momentos, onde um exemplo clássico é a regata Santos-Rio, que é sempre realizada sob uma “pauleira” insana ou uma calmaria agoniante. Não existe meio termo! Ao final dela, quase todos juram que nunca mais a farão: chega! No ano seguinte, lá estão todos novamente: é a memória curta!

Pois isso acontece em cruzeiro também, normalmente em travessias. Para defender minha tese, preciso contar um pouco dos nossos dois últimos meses de viagem.

Como sabem, chegamos em Salvador e aproveitamos muito nossa estada lá, principalmente os amigos e a excelente comida. Um amigo nosso de Ilhabela, o Casali, que muitos devem conhecer, disse que estávamos comendo muito mais do que velejando. Concordo com ele e não posso dizer que desgosto disso! Ele disse que precisávamos “equilibrar” um pouco as coisas para, quando o comandante mandasse fazer um rizo (reduzir as velas), não acabasse saindo um risoto! Dessa forma, na época certa, com a “previsão de tempo favorável”, lá fomos nós numa travessia de três dias em direção a Recife. Levamos dois tripulantes conosco: os amigos Maurício Rosa e sua esposa Tânia, donos do veleiro Alphorria, antigo Folie, que ficava em Ilhabela vizinho do Fandango e que eu quase comprei antes de encontrar o Travessura. O Alphorria ficou aguardando em Salvador, enquanto Maurício e Tânia curtiriam o Travessura.

A “previsão de tempo favorável”, de favorável mesmo, só teve a direção do vento. A velocidade dele foi muito acima do previsto e levantou muito o mar, a ponto de treze dos dezesseis veleiros que saíram conosco no mesmo dia retornarem. As trinta primeiras horas foram uma “pauleira” danada, com rajadas de até 80 km/h, mas o Travessura navegava muito bem e, posso dizer, contente. Já a tripulação sofreu um pouco o desconforto do mar. A escala náutica do mar, como diz a nossa amiga Cecília, do veleiro Plânckton, estava em “o que é que eu estou fazendo aqui!”. Aos poucos o vento foi diminuindo, o mar se acalmando, sol e estrelas aparecendo e a “escala” mudou para “não quero estar em outro lugar do mundo que não seja aqui!”. É, velejador tem memória curta! Após uma velejada alucinante no último dia, com um vento ótimo, chegamos em Recife, tendo completado setenta horas de travessia, das quais usamos o motor apenas três horas, na saída da barra de Salvador.

No Cabanga Iate Clube de Recife, aconteceu novamente o encontro com vários amigos e mais algumas novas amizades foram feitas. Destes amigos, não posso deixar de falar do Torpedinho, nosso Embaixador da Vela Nordestina, que colocou o Travessura numa vaga de “diretoria” e não media esforços para resolver todos os problemas dos velejadores que chegavam para a Refeno, o principal evento da vela do Nordeste, mesmo não tendo nada a ver com a regata deste ano. Ainda com o auxílio dele, que é um dos diretores da Fundação Altino Ventura, que atende deficientes visuais de toda a região nordeste e que faz um maravilhoso trabalho com a comunidade carente, lançamos o livro de nossa primeira viagem em braille e audiobook. Foi um evento emocionante e, nele, fizemos uma palestra onde pude falar das lembranças de minha infância e de minha avó, pessoa muito importante na minha formação, que ficou cega em função de diabetes.

No clube tudo girava em torno da regata que estava para acontecer. A ansiedade de todos é sempre muito grande para chegar em Noronha, que chamamos apropriadamente de “paraíso na terra”. O lugar é de uma beleza celestial, tanto fora quanto dentro da água! Não há foto que não saia boa ou que registre algo feio. Portanto, essas qualidades garantem a definição “paraíso”. Se imagino algum paraíso celestial, ele é igual a Noronha! Já o restante da denominação “na terra” é atribuído graças aos “fiscais da natureza”, que atuam por lá. Os problemas já começam na palestra para os comandantes dos veleiros, onde sempre aparece um desses “protetores dos golfinhos desamparados” e perturbam-nos com um imenso número de regras e proibições, muitas delas, no mínimo, esdrúxulas! Para mim, isso é deseducação ambiental, pois nos faz ficar com raiva do comportamento autoritário e burro desses “protetores”. Ainda mais da forma agressiva como é feita para um público de velejadores, que, me desculpem o trocadilho, “protegem o meio ambiente por natureza”! Quando esses “fiscais” morrerem e forem para um céu (é claro, depois de um bom tempinho no purgatório), espero que ele seja igual a Noronha. E que, quando receberem suas asinhas, recebam também a instrução explícita: “Vocês não podem voar com elas! É proibido aqui no céu, para não estressar os pássaros!”. Espero que Ilhabela nunca caia na mão desses “eco-chatos”, que já estão virando “eco-loucos”. Em 2008, a última vez que fomos para Noronha velejando, disse para mim mesmo que não iria mais, por esse tipo de recepção. Ainda bem que, novamente, a memória curta funcionou a nosso favor e lá vamos nós outra vez, curtir aquele paraíso.

Para a regata, recebemos convidados especiais: o amigo Luis Pimenta, de Ilhabela, e a família Matosko, composta pelos amigos Dimitri, Sirleine e as adolescentes Thaís e Carolina, donos do lindo Eco-resort Itamambuca, de Ubatuba. Com essa tripulação, com quatro adultos e quatro adolescentes, sendo duas Carolinas, as duas apelidadas de “Carol”, largamos no dia 25 de setembro, com previsão de ventos fortes e mar de 3 a 4 metros de ondas. A vantagem de ter Carolina em dobro a bordo, é que podíamos pedir: “Carol, traz uma cerveja.”, e lá vinham duas cervejas geladinhas! Isso se houvesse condições para tomá-las. O mar, um pouco mexido no começo da viagem, cresceu muito e o vento também apertou bastante. Voávamos em direção a Noronha, mas a tripulação sofreu novamente! Apesar de alguns estarem mareados, não escutei uma palavra negativa de ninguém e todos procuravam se ajudar mutuamente.

Aliás, é muito difícil juntar um grupo de adolescentes tão educados e felizes como esse que tivemos nessa travessia! Mas fiquei com medo de traumatizar parte da tripulação, pois o começo da regata foi realmente duro. Muitos barcos quebraram e vários regastes tiveram que ser feitos pelos nossos anjos da guarda da sempre presente Marinha do Brasil. Alguns olhos, sem palavras, me diziam: “Quero terra firme!”. Mas o tempo melhorou novamente e chegamos a Noronha em 42:10hs de regata, num lindo dia de sol e mar muito azul. Descemos todos e começamos a curtir as belas praias de Noronha. Fizemos um verdadeiro “sonhocídio”, pois muitos tiveram vários sonhos realizados, principalmente nosso amigo velejador e pescador Pimenta e o apaixonado windsurfista Jonas. Dois dias depois da chegada, na festa da premiação, fiquei muito feliz ao ver que os adolescentes muito animados já combinavam correr a futura Refeno de 2012. A memória curta atacava novamente e, desta vez, acho que batera um recorde de tempo!

Após cinco dias deliciosos dias em Noronha, percorrendo todos os seus cantinhos permitidos e evitando aqueles onde há “situações estranhas” para visitar (especificamente a praia do Atalaia), retornamos velejando na regata para Natal. Agora estamos aproveitando esta terra abençoada, com sol e vento constantes, dunas, lindas praias e refrescantes lagoas, e com a hospitalidade, tão quente quanto seu sol, do povo de Natal. Mas nosso olhar também é para a frente: já estamos nos preparando para a travessia para o Caribe, uma travessia longa na qual esperamos ter mais amigos convidados!

Então, leitor, concorda comigo que velejadores têm problemas de memória curta? Ou será que nossa memória é seletiva e só lembramos das coisas boas? Ou, talvez, as aventuras, lugares e pessoas que conhecemos viajando são tão bons que, rapidamente, apagam cicatrizes de desconfortos e situações ruins? E para acabar o texto, quero colocar um trecho do poema Mar Português, de Fernando Pessoa, já muito batido e divulgado, mas ainda belo e atual, que nunca será esquecido (mesmo com memória curta!) por quem já navegou em situações difíceis por esses mares:

“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”

Até a próxima edição, mas se não tiverem paciência de esperá-la, acessem www.tresnomundo.com.br e vejam nosso dia-a-dia desta maravilhosa viagem. Abraços!